Não romantizem a violência sexual!

Certo dia eu estava em um grupo do Facebook e tinha uma menina desabafando sobre uma fanfic. Para quem não sabe, fanfic é uma história criada por fãs, com os personagens de suas séries, livros, etc. preferidos. Ela falava que uma dessas histórias retratava uma violência sexual e colocava a culpa na vítima, por ela estar bêbada. Fiquei pensando sobre isso, principalmente porque estava assistindo à novela Fatmagul e por causa de uma história que estava escrevendo.
Tive certeza que deveria escrever esse texto, depois de assistir a um vídeo da Danny Boggione, do Canal Sobrevivendo na Turquia. Ela falou sobre a falta de interpretação das pessoas em relação às novelas turcas.
Eu, sinceramente, não sabia que existiam novelas turcas, nem que elas faziam tanto sucesso na América Latina. Minha irmã me falou sobre "Mil e uma noites" e eu perguntei sobre o enredo, se a protagonista usava véu. Essas coisas que sabemos superficialmente sobre "os países do lado de lá". Verdade que estudei sobre a Turquia na sétima série, eu acho, mas não lembro de nada.
Passou. Até que um dia a TV estava na Band e eu vi um trecho de Fatmagul. Aquele drama todo me chamou a atenção. No dia seguinte eu pesquisei sobre e comecei a assistir. Vi todos os capítulos já lançados em português e concluí assistindo aos episódios em espanhol.
Esse é um resumo da minha história com as novelas turcas, mas não é sobre isso que quero falar. Mas sobre o quanto elas romantizam a violência contra a mulher e os espectadores não percebem.
Fatmagul(cujo título é o nome da protagonista) conta a história de uma moça que é estuprada por três rapazes(Selim, Edorgan e Vural) e um que não participa do ato, mas não impede os outros(Kerim). Depois de ser ameaçada pelo advogado dos três primeiros, que são muito ricos, e sofrer pressão psicológica também da cunhada, Fatmagul se casa com Kerim para "salvar sua honra".
Para quem está achando loucura, na Turquia é assim. Existem os chamados crimes de honra*. As mulheres que são violentadas são "manchadas" e muitas famílias preferem matá-las ou elas são obrigadas a casar com o violentador. Parece irreal para nossa realidade, mas... Vamos continuar.
Agora a Band está exibindo Sila. Ela é obrigada a se casar com Boran, o líder de um clã, porque seu irmão mais velho foi descoberto em uma relação ilícita com a irmã de Boran. Para não haver a morte do casal, houve uma troca de noivas. Não vou me alongar. O fato que quero ressaltar é que Sila não sabia que teria que se casar. Ela foi adotada quando pequena e depois de muitos anos, seu pai biológico volta, a engana e a leva de volta a sua terra natal para se casar com um estranho. Algum tempo depois, Boran, embriagado, obriga Sila a consumar o casamento.
Por serem casados, parece que não foi violência. Parece.
Agora, por que essas novelas fazem tanto sucesso no Brasil? Por que algumas mulheres estão apaixonadas por esses personagens? Eles são bonitinhos, mas há uma diferença entre atores e personagens. E não estamos aqui para assistir, ler, ouvir e achar tudo lindo, sem senso crítico.
Acho que esse fascínio cego vem de uma cultura com um quê de moderna e anti-violência contra mulher, mas enraizada no machismo. Ouvir dizer que mulheres gostariam de ser a Sherazade(de Mil e uma noites), Fatmagul e Sila é concordar com a submissão a maus-tratos e violência por causa de um cara bonito e um suposto amor.
A violência sexual não pode e não deve ser romantizada! Ela destrói a autoestima, o amor próprio, o senso de valor da mulher e até ela superar tudo isso não são apenas alguns meses como em uma novela. Leva anos, uma vida. Algumas nunca superam.
Eu estava trabalhando em uma história e um dos casais tinha uma história bem complicada que estava me desafiando em vários sentidos. Até eu perceber que a maneira como eu havia desenvolvido, chegaria a meu objetivo, mas havia algo ali que era de certa maneira uma violência contra a personagem e eu pisei no freio. Reavaliei e conduzi por outro viés.
O que quero dizer é que como espectadores, leitores ou escritores temos que ter em mente que nem tudo colocado sob uma ótica romântica merece ser romantizado. Os subtítulos das novelas trazem "Força do Amor" e "Prisioneira do Amor". Realmente, força é o que Fatmagul precisou ter para enfrentar homens poderosos e fazer justiça, para se superar, perdoar e tentar levar um casamento forçado. Prisioneira é o que de fato Sila é. Presa a um sistema de mentiras, a um casamento arranjado e ao perigo de ser morta a qualquer instante por ter "quebrado as regras". 
É muito fácil sermos influenciados, se não estivermos de olhos abertos e com as anteninhas críticas ligadas. O ser humano tende a se adaptar, se acostumar com algumas coisas. Isso inclui achar normal a violência doméstica, sexual, as músicas que denigrem a imagem feminina... Longe de feminismo ou qualquer outra bandeira partidária, mas como diz Alanis Morissette "essas são as versões da violência, às vezes subentendidas, às vezes claras". Até onde vai a linha tênue que divide o romance, de uma realidade violenta maquiada, tentando nos convencer que é amor um caso grave da Síndrome de Estocolmo?

*Crimes de honra são aqueles causados por qualquer comportamento que a família considere desonroso, incluindo relacionamento homossexual, relações fora do casamento, mulheres que abandonam a casa do marido ou até mesmo uma moça que seja vista conversado com um rapaz. Saiba mais em:


Excelente texto. Demorei um pouco para fazer a leitura, mas isso não poderia mesmo ter acontecido em outro dia. Hoje mesmo tivemos a notícia de um estupro coletivo sofrido por uma menor; como se não bastasse a barbárie, os criminosos ainda publicaram fotos e vídeos do ato na internet debochando da vítima. Diante disso, como encarar como "mimimi" toda problematização que vem sendo feita em torno dos direitos das mulheres?

Concordo com você sobre a urgente necessidade de sermos críticos em relação ao que vemos e ouvimos, é triste ver a mídia reforçando, ainda que indiretamente, prisões que já deveriam ter sido rompidas.

Um bom feriado para você. Abraço!

2 comentários:

  1. Sou fã de fatmagul. Essa novela é baseada em fatos reais. Ela lutou contra um sistema pra ver o crime que cometeram contra ela punido pela lei, coisa que na época, quase nunca aconteceria!

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  2. Obrigada por comentar! Sim, ela foi muito forte. Infelizmente, acontece em todos os lugares do mundo, em alguns piores que outros.

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